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Foram necessários alguns dias para assimilar um pouco do que de fato foi viver os dois shows do Paul McCartney. E após tudo o que se passou e se sentiu, a conclusão é óbvia: não dá pra traduzir num texto. Então, dane-se. Vou escrever aleatoriamente sobre alguns momentos, uma coisa aqui, outra ali, e registrar sem a menor pretensão de fazer disso um documento que ateste que todo aquele frenesi e excitação se justificaram a cada nota tocada pelo sujeito e sua banda. Não sejamos tão óbvios…

O domingo começou com a ansiedade que já se arrastava dias antes, e teve sabor de vinho pra segurar o nervosismo. Saímos de casa no meio da tarde pra encontrar Natalia e Sarah pelo caminho. Seguimos para o Morumbiba, e após uma entrevista falsificada que concedi à Rádio SulAmerica, chegamos àquele verdadeiro formigueiro. Nos separamos, e eu e Debs ficamos sentados na calçada, do lado oposto à nossa fila, que se misturava com outras três, e por isso mesmo, era incompreensível e impenetrável. Porém, Zeca Camargo e o Corolla (sempre um Corolla) da Rede Globo cometeram a mais propícia das infrações de trânsito, e atravessaram a calçada para que a Barbie pudesse adentrar ao panetone. Nisso, nossa fila – que começou a andar minutos antes – evidenciou-se com maravilhosas brechas, prontas a serem invadidas, e assim, furamos despudaradamente (da mesma forma que faríamos no segundo dia).

Assim que entramos, a preocupação deu lugar à satisfação por ter gastado uma grana nos ingressos mais caros daquela joça. O comparativo entre os lugares do primeiro e segundo dias evidencia a absurda diferença de visões (o que nos propiciou dois shows distintos, coisa que de fato quisemos desde a opção pelos lugares).

Sentamos e por lá ficamos, ladeados por casais mais velhos, uma certa molecada, um punhado de playboys e um incômodo fumante de charutos. O contexto geral minimizou tudo isso. Às 21h, os (enormes) telões laterais começaram a exibir o mix de imagens da vida de Paul e dos Beatles, ao som de um remix dos mais simpáticos de músicas dele e dos besouros. E assim foi durante a meia hora seguinte, até o momento em que as luzes baixaram linda e sutilmente, até o palco em tons roxos ser a única coisa iluminada naquele local. Meu coração acelerou de uma forma absurda, e eu berrava a plenos pulmões, crente que após duas músicas já estaria afônico. McCartney aparece. E o que mais se vê são pessoas chorando e gritando. Eu chorava, muito. E aos primeiros acordes de Venus And Mars, eu entendo perfeitamente o que significa estar em frente a um beatle. Vieram Rock Show e Jet, que me fizeram voltar a ter 12 anos e pular feito uma criança, que gosta muito mais da bagunça do que da música propriamente dita. O choro não cessava. Debs ria da minha cara descontrolada, enquanto a namorada de um cara ao meu lado fazia o mesmo com ele. Meu amigo nas 3 horas seguintes foi uma companhia excelente, no que se diz respeito à histeria e entendimento do que estava acontecendo ali.

Veio All My Loving. O Morumbi pulsava. Era Beatles, ao vivo. E eu aqui, quatro dias depois, escrevendo isso com lágrimas nos olhos. Foi lindo, lindo mesmo. E em Letting Go, uma música que eu acho bem chatinha, entendi que de fato era necessário um freio naquilo tudo e Sir Paul deve ter colocado essa música de propósito na sequência, caso contrário metade daquele povo não sobreviveria até o final do show. Respirar era preciso. Paramos um pouco, olhamos o palco, e aquela banda perfeita, afinada, e tudo era lindo. As imagens, gigantes. Os telões – para os quais não precisávamos olhar – espetaculares. E vieram Drive My Car e Highway, intercaladas por um Paul McCartney simpatissíssimo, comunicativo, envelhecido – e por isso mesmo, ainda mais amável, pois todos nós gostamos de velhinhos simpáticos e fofinhos. Começa Let Me Roll It, e eu volto a chorar e cantar a plenos pulmões uma das letras mais fáceis e bonitas do universo. Paul vai pro piano, e em frente a uma projeção igualmente cinzenta, desfila a maravilhosa The Long And Winding Road – segundo a Jan e por mim endossado, a música mais triste de todos os tempos. A alegria geral volta em Nineteen Hundred And Eighty Five, com a pista toda dançando gostosamente. E eu noto que não era capaz ainda de olhar o restante do estádio, e eu nem sabia se estavam todos de fato gostando, mas o festival de sorrisos que se via por perto era uma excelente amostragem, e sim, aquele era um puta show e nós estávamos nele. Let ‘em In, com sua letra de quatro versos, é claramente a música que Paul toca pra ele mesmo – coisa que só alguém com tamanha importância pode se dar ao luxo de fazer: colocar no setlist algo que lhe dê prazer, mesmo que não seja uma música de arena. Paul sorri, canta feliz, a música vai baixando e todos aplaudem. Todos entendem. Vem então o set romântico. My Love, I’ve Just Seen A Face, And I Love Her e a irretocável e tocante Blackbird, com o backing vocal de 64 mil pessoas.

E após alguns açúcares, Paul dedica Here Today a John Lennon. A música com letra triste e saudosa, mas que não comove “como deveria”. E então começa o show de alegria de Abe Laboriel Jr, o baterista competente e simpatissíssimo de Sir Paul. Assim como o frontman, ele leva o público na palma da mão, diverte, cativa, e a gente acaba ficando com um peso na consciência de por vezes desviar os olhos de McCartney pra ver o que o rapaz anda aprontando na bateria. Mrs. Vandebilt começa e o “Ho, hey ho” que dá o tom da música é entoado por todos. Novamente o Morumbi vira uma pista de dança, e ninguém resiste a mais um clássico do Wings. Nova quebra, com Eleanor Rigby. Vários choram. Tento ligar pra Bibi, mas não deu dessa vez. E chega a vez de Something, pra George.

E então eu olho pro cara do lado, e a gente olha pro telão, e a música é cantada debaixo de fotos maravilhosas do beatle saudoso preferido deste que vos escreve. E a Debs se emociona, e eu também, e o cara, e aí sim a homenagem é assimilada e emociona todo mundo, e é daqueles momentos lindos, perfeitos, que a gente nunca mais vai esquecer. Something agora é definitivamente a música dos amigos Paul e George. Ponto altíssimo do show. Eu achei que nada mais pudesse emocionar daquele jeito. Sing The Changes não emocionou ninguém, soou até meio yankee demais, deslocada no show. Não comprometeu, mas será esquecida. Começa Band On The Run, e minha garganta só não é mais exigida que meu sorriso. A Debs demonstrava alguns sinais de cansaço, e eu estranhando que minha voz ainda não sumira, cantava o mais alto que podia. E eis que então o moço chama a todos para cantar a música a seguir, e a até aquele momento bobinha e idiota Ob-La-Di Ob-La-Da transforma o estádio numa verdadeira micareta. Uma loucura, absurda, uma alegria plena e ninguém ali escondia mais a satisfação que era aquilo tudo. Sorrisos pro alto, risadas altas, vozes e vozes, e os Beatles novamente me pareciam ainda maiores do que eu imaginava. Mais um momento perfeito. E ainda tinha mais.

Porque veio Back In The USSR, e aí eu vi a pequena pulando e cantando loucamente na minha frente (assim como eu, óbvio), pra minha alegria e vendo que sim, eu não estava sozinho na histeria descontida. Seguiram-se I’ve Got a Feeling, com Paul não medindo esforços em se esgoelar e desafinar assumidamente (e quem se importa com isso?), e Paperback Writer, que novamente botou o povo pra dançar. Eis que então acontece o momento que teria tudo pra ser o mais cafona do show, e longe disso, arrebentou com todos: A Day In The Life, que é uma obra-prima incontestável, cantada daquela forma depressiva que lhe caracteriza completamente, emendada com Give Peace A Chance, onde fez-se sobre nossas cabeças um mar de balões brancos. Uma catarse, um exército de sorrisos, a mensagem da música escancarada noite adentro, onde nada mais importava nessa vida além de contemplar um momento como esse. Mais lágrimas. Muitas, e muita voz ainda, pra gritar alto aquilo tudo.

E aí aconteceu uma coisa que só poderia acontecer no show de um Paul McCartney da vida:

Veio a sequência Let It Be, Live And Let Die e Hey Jude, pra matar qualquer um do coração. Na primeira, transformaram o gramado e arquibancadas num céu estrelado, além das mãos pra cima naquela coreografia padrão e bonita demais, quando feita por tanta gente ao mesmo tempo. E veio Live And Let Die. Cantada a plenos pulmões, punhos pro alto, socando o ar e exorcizando demônios com toda a energia que me parecia possível. Eis que quando ele simplesmente anuncia “say live and let die…“, acontece ISSO:

A foto é do dia seguinte. Mas alguém liga pra isso?

E aí meu amigo, o que se seguiu naqueles 3 ou 4 minutos seguintes foi o maior acesso de descarrego musical que eu já vivi. Foi absurdo. Surreal. Poderoso. E Paul fez Axl parecer um cantorzinho de MPB de boteco com aquela versãozinha até então boa, tal a intensidade daquele verdadeiro míssil. Cessaram os fogos, o som, e minha alma estava limpa, purificada. Eu já poderia ir pra casa. Mas não fui, e cantei Hey Jude, no coral mais bonito que aquele estádio já abrigou. Hey Jude foi a música que quando pequeno, me abriu os olhos pela primeira vez para aquele senhor inglês. Aquele “na na na naaaa” hipnótico me emocionou quando criança, e lá estava eu, vivendo aquilo de dentro. Que coisa absurdamente mágica. Que poder esse cara tem pra fazer uma coisa dessas? Acabou. Eles foram tomar uma água. Eu não sabia o que dizer.

Eles voltaram. Bandeiras do Brasil e da Grã-Bretanha. Nada de tempo pra descanso. Day Tripper e Lady Madonna trouxeram mais Beatles e mais um pouco de energia a corpos que já estariam esgotados há tempos. Mas dançamos, cantamos, e foi novamente lindo. Mais uma água pros moços. E eles saíram, e voltaram.

E veio Yesterday. Somente Paul, somente um violão. E novamente ninguém ousou cantar mais alto que Paul. Mas eram 64 mil, e aquilo parecia uma missa, com todos sabendo cada palavra, e lá foi ela, linda e calma, pras nossas memórias. Já não havia mais forças pra continuar aquilo, mas surge Helter Skelter. E foi um orgasmo. Sim, havia algo ainda a ser mandado pro inferno, e foram-se todas as forças pra isso. Berrada, vivida na alma, música boa da porra. E Paul se despediu: “agora vamos embora”, ele disse. E rolou a saudade instantânea. Mas ainda vinha a maravilhosa, clássica, fodida Sgt Pepper’s Lonely Heart’s Club Band para anunciar o verdadeiro final. Últimos solos, últimas brincadeiras. Chega The End. And in the end, the love you take is equal to the love you make. Luzes. Aplausos. Muitos aplausos. Aconteceu mesmo, e nem mesmo aquela saída desastrada e uma cambota desajeitada tiraram Sir Paul McCartney do trono. Sim, foi o show da minha vida. E foi também o de muita gente que saiu do Morumbi aquela noite sabendo que a vida é sim muito melhor quando você concretiza um sonho. Um sonho tão grande que parece impossível. Mas aconteceu, e eu sonharia de novo na noite seguinte. Se existe mesmo um Deus, alguém a se agradecer por certos dons, eu agradeci sim: pela minha vida, e por alguém, algum dia, ter deixado esse sujeito pegar num violão, num baixo, numa guitarra, e dali em diante mudar simplesmente tudo o que a gente hoje em dia conhece como música – essa coisa que todo mundo gosta, e que ninguém é capaz de explicar. Eu não sou capaz de explicar o que foi a noite de 21 de novembro de 2010. E sou muito, mas muito feliz mesmo por isso.

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No dia seguinte, chovia.

Acordamos arrebentados. Eu, não como imaginava. A Debs, sim. Cada um foi encontrar com sua mãe, e juntamos todos na casa da sogra por volta das 16h. Capas de chuva nas mãos, voltamos ao Morumbi. E novamente, nada de fila. Entramos rápido, sentamos em cadeiras ensopadas na arquibancada vermelha, e por lá ficamos até a chegada dos pais da pequena. Éramos seis: esposa, mãe, sogros, cunhada e eu. E chovia, e parava, e chovia. E algum engraçadinho resolveu colocar pra tocar no estádio Who’ll Stop The Rain?, do Creedence. Gargalhadas… não tinha jeito mesmo. Foi assim comigo em 1992, no molhado show do Guns N’ Roses. Depois no Helloween. Seria assim no Paul. Às 21h10 começou novamente a projeção. A chuva parou, e não voltou mais.

Pensem o que quiserem. Eu tenho minhas ideias sobre isso.

Às 21h40, lá estava ele de novo. Dessa vez via telão, dessa vez seria assim, e eu curtiria metade olhando pro show, metade olhando pra minha mãe. E assim foi, dessa vez menos emocionante, mais assimilado, mas algumas lágrimas surgiram sim, algumas vezes. Os pais atrás, os filhos na frente, veio Magical Mistery Tour, linda e colorida, pra começar o show. Eram lágrimas inéditas, e vieram. O que se seguiu dali em diante foi o show visto de cima, com intervenções semelhantes, e um ou outro improviso. Quatro músicas diferentes (Two of Us, Got to Get You Into My Life, I’m Looking Through You e Bluebird), além da já citada Magical Mistery Tour deram novos ares à apresentação do sujeito. Mas o novo ponto de vista trouxe também novas sensações, e percepções, como o universo todo do estádio reagindo àquilo tudo, nossos pais curtindo o moço e cantando junto, e da mesma forma, foi impossível não cantar tudo aquilo de novo, com energia um pouco mais baixa, mas igualmente intensa. Live And Let Die vista de longe foi igualmente impressionante. Let it Be fez muito mais sentido dali de cima. Foi mais fácil ser racional, e dali em diante ver se tudo aquilo que acontecera 24h antes foi de fato real. Foi. Mesmo. Ver minha mãe chorosa e feliz, curtir com ela, ver minha pequena ali pulando de novo (um pouco menos, é verdade, porque o cansaço era grande), e fotografando loucamente o show das nossas vidas… isso tudo a gente não coloca em cifrão, em número, em nada. E é o que vale de fato.

As caras de cansaço e alegria de todos quando do final do show esclareciam um pouco mais o encantamento que nos fez embarcar na loucura de dois megashows durante o intervalo de um dia. Valeu a pena sim. Não foi loucura. Foi euforia, devidamente recompensada por 6 horas de música. Da melhor música. Aquela que embalou alguns de nossos melhores momentos, e que agora ganham roupagem nova, e mais momentos pra não se esquecer.

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