Paredes brancas

jan
2010
26

escrito por | em Comes e Bebes, Vidinha | 7 comentários

Lembro que eu lia o Estadinho – o suplemento do Estadão que era comandado pelo Mauricio de Sousa todos os domingos. Não lembro se antes ou depois do início dos anos 90, mas sei que a variação era pequena. Oitenta e muitos ou noventa e poucos, num desses domingos a matéria de miolo daquelas quatro páginas era sobre coleções. O maior destaque entre os entrevistados era de um garoto que aparecia pendurado de cabeça pra baixo entre trocentas latinhas, de refrigerante e/ou cerveja, também não lembro. Afinal, já se passaram duas décadas dessas memórias.

Mas por algum motivo eu quis recomeçar minha coleção naquele instante. Sim, recomeçar, pois já havia feito uma dessas quando ainda morava em Santo Amaro, no sobradão de três andares. Meu quarto era gigante, e eu havia pegado emprestadas duas ou três caixas plásticas grandes do quartinho que meus pais usavam de dispensa. Creio que tenha conseguido acumular umas vinte ou trinta, quando dia desses cheguei da escola e minha mãe havia jogado tudo fora. Emputeci horrores, mas quando você tem menos de 10 anos, emputecer é tudo o que lhe resta.

Arrisquei. Peguei a tal página dupla, e fui todo pimpão mostrar a ambos o quanto aquela coleção gigante de 60 ou 70 latinhas do moleque era bacana. Pra minha surpresa, fui incentivado a recomeçar a minha. Mas antes, pedi pra minha mãe “não joga fora dessa vez, senão não vai adiantar nada guardar…”. Ela disse que tudo bem, e eu parti pra cima. Comecei, mas não foi com uma Coca-Cola, e sim com um Guaraná Antarctica. Eu acho.

E dali em diante, uma a uma, fui erguendo minhas prateleiras. Meu pai, pra minha enorme surpresa, era um entusiasta dos grandes daquelas fileiras de alumínio colorido. Topava parar no mais sombrio dos botecos em busca de um novo exemplar. Ainda achávamos algumas em folha de flandres: Schincariol, Malt90 e uma tal Vodka Polska. Eram essas as enferrujáveis, minhas primeiras jóias. As únicas da espécie.

Vinham os grandes eventos: Copas do Mundo, Olimpíadas, corridas de F1, patrocínios do Paulistão, festas juninas, Parintins, Natais e finais de ano. Tudo era motivo para um novo modelo, um rótulo inédito, mais 350 ml goela abaixo. E quanta porcaria bebemos: cervejas americanas (as piores disparado), japonesas, australianas, suecas, alemãs, inglesas, colombianas, cervejas sem álcool, uns sucos com polpa, drinques de tomate, vinhos, achocolatados, cafés gelados e outras substâncias difíceis de identificar. De poucas sentimos saudade.

Herdei uma coleção de um dos amigos do Carlão. Chegaram em casa três sacos plásticos (dois grandes e um pequeno). Deviam ter ali umas 50 ou 60 latas… mais ou menos a coleção do moleque do Estadinho. Algumas latinhas vieram bem baleadas, mas eu não ligava. Vasculhava cada cor, desenho, capacidade, de onde vinham, tentava gravar cada nome pra depois poder contar que tinha conseguido uma cerveja de 278 ml do Uruguai assim assado. Sequer bebia quando já tinha mais de 200 latas. Minha primeira cerveja foi pra prateleira. Uma Budweiser, que tomei na cozinha aqui de casa, com meu pai e minha mãe. Achava aquele gosto de mijo gelado com bolhas uma coisa estranha (o máximo que eu bebera até o momento era o colarinho dos choppes do meu pai, ou um tiquinho das caipirinhas de steinhaeger que ele vira e mexe pedia). Beber além da espuma era uma novidade desbravadora, e ajudar a engrossar minhas fileiras – e consequentemente sumir cada vez mais com minhas paredes – me parecia um prazer pronto a ser vivido com mais participação a partir daquele momento. Por sinal, não me lembro de algum amigo que tenha começado a beber pra poder aumentar a coleção de latas. Meu pretexto era, além de propício, bastante exclusivo.

Facilitei também a vida dos que vinham de fora. Tios, primos, amigos, conhecidos, pintavam por aqui vez ou outra uma nova meia dúzia de importadas. Vale lembrar que nem sempre comprar produtos estrangeiros foi fácil ou barato, e conseguir um exemplar gringo valia e muito. Crush, Mello Yello, Canada Dry eram nomes que eu gostava de ter por aqui em versões que não circulavam em nossas prateleiras (a Crush daqui vinha em latas laranja berrantes, enquanto a de lá de fora era predominantemente preta – do mal, ou seja, muito mais legal).

Tirei alguns armarinhos. Estreitamos as prateleiras (o vento as derrubava), e reorganizamos o quarto. Outro armário dançou, e então eu fiquei só com um, com as roupas apertadas, mas as latas derramadas ao redor das paredes. Meu quarto tinha agora uma acústica invejável, e cores por toda a parte. Acabaram as paredes, e as latas continuavam chegando aos montes. Aos poucos fui obrigado a frear, até parar.

Era impossível limpar aquilo tudo, mas ainda assim eu e meu pai tentamos, por duas vezes. Minha rinite gargalhava do meu nariz vermelho, mas em tais oportunidades tiramos tudo, e limpamos, uma a uma, até recolocar no lugar. Cada vez que a arrumação terminava, elas pareciam ainda mais bonitas. Era uma paixão aquele ambiente completamente destoante da casa, onde imperavam os ídolos rockeiros, os livros e cds, e aquela cachoeira de alumínio. Cada um que entrava se assustava com a quantidade naquele quadradinho apertado.

E ela estacionou. A vida seguiu, e meu pai quis a coleção pra ele. “Quando você for embora, as latinhas ficam”, ele me disse. Eu topei, sabendo que elas estariam em ótimas e felizes mãos. Alguns anos passaram, uma ou outra chegava e encaixava em alguma fresta dos espaços. Até agosto passado chegar, e levar meu pai antes que eu pudesse lhe deixar as latinhas que ele tanto gostava e tanto ajudou a montar em minhas paredes. Três meses depois encontramos nosso (ainda futuro) apartamento, e começamos a mexer os pauzinhos pro casamento sair. Eu precisava de um herdeiro.

Encontrei, num amigão de agência, que tem um sítio que conheci neste final de semana. Lá estão, ainda amontoadas num cantinho e clamando por espaço, as 4500 latas do rapaz. Não tomaram sol, não acumularam poeira, e parecem tão bonitas quanto as minhas. Eu achei que seria uma boa forma de promover minha coleção a outro patamar, de milhar. Que não cabia no quadradinho, que descobri abrigar com aperto 700 e poucas unidades. Elas precisam respirar, e hoje, eu também. Iniciei as entregas, e hoje terminei de fechar o último dos 7 sacos de 100 litros, onde elas farão sua viagem pra Campinas.

E o quarto, que desde hoje à tarde faz até eco, tem em suas paredes as marcas onde cada uma montou residência. Vinte anos se foram, e hoje, quando eu olho em volta e tudo o que vejo é branco, percebo que mais do que latinhas, cada gole de cada uma valeu uma história. Muitas lembranças, de suas cores, de quem as dividiu comigo, de quem as trouxe e de quem se impressionou com aquele universo brilhante. Elas eram lindas, e continuarão sendo, mas na minha lembrança. Em lindos arquivos digitais que eu cuidadosamente registrei antes de tirá-las de seus postos. Será mais fácil limpar as paredes daqui em diante, mas as paredes não têm metade da graça que tinham antes. Fato é que o tal eco e a amplitude desse quarto deixaram a claríssima impressão da grande mudança – aquela, que o casamento deveria trazer, mas que ficou mesmo evidente pra mim quando derrubei a última lata da prateleira.

A vida, definitivamente, está (se) mudando.

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Pra quem não viu e ficou curioso, a coleção completa (que eu pretendo em breve publicar o arquivo fotográfico) foi registrada há uns anos. Não mudou muito desde então, e era assim:

Coleção é uma coisa que todo mundo devia fazer pelo menos uma vez na vida.

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