Noites e dias

out
2006
13

escrito por | em Umbigo | Nenhum comentário

As últimas palavras antes do sono traziam puro carinho. Já era alta madrugada quando dominado pelo sono, entregou-se ao barulho da chuva e à completa escuridão. Enrolou-se então no edredon, não deixando uma parte sequer de seu corpo desprotegida do frio, que não cessava. Tomou cuidado também para que aquelas mesmas palavras não lhe escapassem dos ouvidos, do coração e da memória. E adormeceu.

Ao acordar poucas horas, notou o véu de água que encobria a paisagem assim que abriu a janela. Dias cinzas já haviam embalado suas lágrimas durante muito tempo, mas agora não o afetavam mais. As cores do céu, das árvores, dos tijolos estavam todas num estojo velho guardado em sua mochila. E enquanto arrumava sua cama, aprontando-se para retomar sua vida, descobriu aquelas mesmas palavras guardadas poucos momentos antes espalhadas pelo colchão. Recolheu-as, uma a uma, e guardou-as num lugar onde estivessem visíveis e cujo acesso fosse o mais fácil possível – assim serviriam como lembrete constante, refúgio nas urgências e remédio contra possíveis males futuros.

No caminho para o trabalho, o silêncio do sono de outros pedestres era interrompido somente pelos Beatles tocando baixinho em seus fones. E claro, as palavras – agitadas na sua cabeça, no seu peito. As árvores choraram suas flores com a chuva e fizeram na calçada um tapete amarelo que cobria completamente o cimento. Os Beatles não tinham essas cores todas em Liverpool – a lisergia completaria essa lacuna posteriormente. Saudade. Saudade no peito. A voz do Paul e aquele piano triste quase transformam sua paz em sofrimento. Mas nesse momento uma das palavras encobriu a música, a calçada, a garoa. Quatro letras que o transportaram dali para um lugar bem distante, livre de qualquer interferência externa.

E agora estava tudo pronto: as palavras, as músicas, aquele estojo velho, boas memórias – colorir o dia cinza seria bem mais fácil.

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